RESUMO
É descrito o caso de um trabalhador da indústria de cimento-amianto, portador de quadro de asbestose comprovado clínica, funcional e radialogicamente; trata-se do primeiro caso dessa pneumoconiose descrito na literatura médica brasileira. É chamada a atenção para a possibilidade de que casos dessa doença estejam passando desapercebidos no Brasil, onde é crescente a utilização do amianto pela indústria.
Unitermo: Asbestose, Brasil.
SUMMRY
A single case of asbestosis occurring in a cement-asbestos worker is described, this being the first case clinically, functionally and radiologically confirmed and described in the Brazilian scientific litterature. Due to the increasing use of asbestos by Brazilian industry, attention is drawn to the possibility of cases like this passing undiagnosed unless the possibility of its occurrence is considered.
Uniterm: Asbestosis, Brazil.
O asbestos ou amianto é um silicato que ocorre na natureza sob a forma de fibras, que podem ser fiadas e tecidas; suas principais formas de ocorrência são os tipos crisótilo e anfíbolo. De acordo com Gilson2, em 1966 foram utilizadas, em todo o mundo, 2.780.000 toneladas de asbestos crisótilo e 240.900 toneladas de asbetos anfíbolo.
O termo "asbestos" é de origem grega e significa "indestrutível". Na antiga Grécia, foi utilizado na tecelagem de mortalhas que, por não serem destruídas pelo fogo, permitiam o recolhimento das cinzas dos mortos nas piras funerárias; fiado sob a forma de pavios, era utilizado em lâmpadas, uso que até hoje persiste 3.
O uso moderno do asbestos data de 1800, quando passaram a ser comercialmente exploradas as jazidas canadenses e russas, sendo o material utilizado para a fabricação de tecidos incombustíveis por indústrias têxteis inglesas e francesas. Desde então a utilização industrial do asbestos aumentou enormemente, em vista do seu custo relativamente baixo (de US$ 75 a US$ 1.250 por tonelada), sua grande resistência à abrasão e ao calor, sua natureza fibrosa; por outro lado, a alta resistência à tração e a grande flexibilidade das fibras dá ao asbestos propriedades ainda não conseguidas por fibras artificiais. Assim, mais de mil usos industriais para o amianto têm sido descritos: misturado ao cimento, dá origem às placas e telhas de cimento-amianto, muito utilizadas para coberturas de edificações, e a tubulações de vários diâmetros e de baixo preço; é utilizado nas lonas de freio de automóveis, na fabricação de equipamentos individuais de proteção (luvas, aventais, capuzes, etc.) resistentes ao calor e ao fogo, na isolação térmica de caldeiras, tubulações de vapor e na isolação elétrica e térmica de equipamentos elétricos, etc. 2.
A inalação de asbestos provoca uma pneumoconiose muito grave, a "asbestose". Não obstante Heródoto já ter descrito a alta mortalidade por doença pulmonar de escravos encarregados de fiar e tecer mortalhas de amianto, a primeira descrição científica da moléstia foi feita em 1899 por Murray; suas observações mereceram pouca atenção dos meios científicos e somente a partir de 1930 o grave risco dessa moléstia profissional foi conhecido, com um número cada vez maior de casos de asbestose sendo descritos em todos os países industrializados2, 3.
A sintomatologia aparece geralmente após 5 a 10 anos de exposição e é a de uma insuficiência pulmonar rapidamente progressiva. Freqüentemente surgem carcinomas brônquicos e, nos últimos anos têm-se notado incidência significantemente elevada de mesotelioma da pleura em trabalhodores expostos ao asbestos.
O diagnóstico é feito através da anamnese profissional, da constatação da insuficiência pulmonar através das provas de função pulmonar e do diagnóstico dos pulmões.
De acordo com Weil e col. 8, as alterações funcionais atingem tanto a função ventilatória como a alvéolo-respiratória, sugerindo que o asbestos age precocemente sobre as vias aéreas e, posteriormente, afeta as trocas gasosas.
Quanto ao exame radiológico, Sander7 destaca que as imagens não são tão evidentes como as da silicose. Observa-se sombreamento dos lobos inferiores, que se inicia precocemente e que progride em crescimento quer quanto à sua densidade, quer quanto ao desaparecimento gradual das sombras vasculares; a típica nebulosidade tem sido comparada com a imagem de "vidro despolido". Rubin5 menciona, também, que as porções inferiores dos pulmões são principalmente aquelas envolvidas com fibrose fina em áreas irregulares interceptadas por áreas de enfisema e extensas pleurites. Hunter3 compara as imagens dos campos inferiores a uma fina rede e Gilson 2, assim como Sander 7 referem obscurecimento ou mau delineamento da área cardíaca, dando a aparência característica do "coração borrado" ("shaggy heart").
Faccini1 lembra que o processo fibrótico não é exclusivo das bases; apenas aparece mais nessa região durante o exame radiológico. Na opinião desse autor, "... dizer que a fibrose existe na base não é o mesmo que dizer que as alterações fibróticas se restringem às bases pulmonares, mas sim que as alterações são vistas mais precocemente nas bases. Existem, de fato, condições anatômicas e fisiológicas que consistem essencialmente em maior espessura do parênquima ao nível das bases e na disposição e condições de maior enchimento dos vasos a este nível, o que favorece, por efeito de somação de sombras, a visibilidade de uma fibrose incipiente".
No Brasil, o asbestos é produzido em apreciável quantidade. Segundo o IBGE 4, durante o ano de 1968 foram extraídas 345.442 toneladas do minério, na sua quase totalidade da variedade crisótila, de minas existentes nos estados de Alagoas (276.300 toneladas), Minas Gerais (1.900 toneladas) e Goiás (60.242 toneladas); sabe-se, porém, que nos últimos anos a mineração em Goiás aumentou substancialmente, não havendo, todavia, dados estatísticos recentes a esse respeito.
A despeito da grande utilização do asbestos no Brasil, principalmente pela indústria de cimento-amianto, elétrica e de fabricação de lonas para freios, curiosamente não existe publicado nenhum caso de asbestose. Isso indicaria a inexistência dessa pneumoconiose entre os trabalhadores brasileiros, hipótese pouco provável, ou a falta de diagnóstico de casos da doença que estariam sendo rotulados como sendo de outra etiologia. Por essa razão, e a despeito do pequeno interesse da publicação de observações referentes a casos isolados, achamos que seria oportuno se divulgar um caso que, por ser provavelmente o primeiro a ser publicado entre nós, poderá despertar o interesse dos pesquisadores para a detecção de outros casos semelhantes.
Caso – O paciente L. R. S. foi encaminhado ao Laboratório de Provas de Função Pulmonar, do Instituto de Pneumologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo, para ser submetido a exame funcional pulmonar em virtude da dispnéia que apresentava. A anamnese profissional feita por dois pesquisadores (SJU e RKK) revelou exposição ao asbestos, pelo que mereceu atenção especial. Tratava-se de indivíduo do sexo masculino, com 51 anos de idade, que referia que há 22 anos começou a trabalhar em indústria de cimento-amianto, inicialmente como simples operário mas, progresivamente e através dos anos, como encarregado, contra-mestre e chefe geral. Em todos esses anos esteve sempre exposto a grande quantidade de poeira tanto de cimento como de asbestos, quando era feita a mistura para ser umedecida posteriormente. Também refere respirar poeira quando as peças de cimento-amianto já prontas eram cortadas, escovadas ou lixadas. Sempre gozou de boa saúde, mas há cerca de 4 anos começou a notar que apresentava dispnéia aos esforços maiores (correr, subir vários lances de escada, etc.), ao que não deu maior importância por acreditar ser proveniente do fumo de cigarro (fumava 20 cigarros por dia). Há dois anos vem notando dispnéia progressivamente mais intensa, que o obrigou a abandonar o trabalho, estando presentemente em gozo de auxílio-doença no INPS.
Exame físico geral – Paciente abatido, com 1,69 m de altura e pesando 62,5 kg; pulso 88; pressão arterial 130 x 80.
Exame físico especial – O exame dos aparelhos em geral nada revela digno de nota. O exame do aparelho respiratório evidencia discreta hipersonoridade das porções superiores de ambos os hemitoraces, onde a ausculta revela diminuição do murmúrio vesicular.
Exame funcional dos pulmões – A capacidade vital está nitidamente reduzida, devido à diminuição acentuada e uniforme dos volumes de reserva e de redução menos intensa do volume corrente. A capacidade pulmonar total está reduzida em valor absoluto, mas proporcionalmente maior que a capacidade vital, devido à redução menos acentuada do volume residual. A capacidade residual funcional mostra-se bastante aumentada em relação à capacidade inspiratória. Há aumento moderado do espaço morto fisiológico. A capacidade máxima respiratória mostra-se muito reduzida, não se alterando significativamente pela inalação de broncodilatadores. Há nítida redução do volume expiratório máximo por segundo, que melhora discretamente após a inalação de broncodilatadores. Os índices ventilatórios mostram-se muito reduzidos em repouso, caindo para níveis indicativos de dispnéia intensa após o exercício padrão. Há hiperventilação pulmonar, com ventilação alveolar normal e nítida diminuição da relação entre os dois valores. O exame do sangue arterial (obtido por punção da artéria braquial) evidencia a redução muito acentuada tanto da pressão parcial do oxigênio arterial como da saturação em oxigênio, notando-se que esses valores ainda se reduzem mais pelo exercício de 30 watts durante 10 min. em um ergômetro de bicicleta. Pela respiração de oxigênio puro não se obtém a saturação completa do sangue arterial (Anexo).
Exame radiológico dos pulmões
Teleradiografia n.° 47.731, de 21 de março de 1975, feita na "Faculdade de Saúde Pública" da Universidade de São Paulo.
Paciente: L. R. S.
Resultado: Fibrose intersticial dos lobos inferiores com estrias lineares finas entrecruzadas na base do pulmão direito. Enfisema nas metades superiores. Imagem cardíaca de contornos indefinidos. Arco Aórtico saliente (Figura).
COMENTÁRIOS
Um fato extremamente importante deve ser destacado em relação ao caso apresentado: a importância da anamnese profissional, proposta por Ramazzini6 em 1700 e de importância fundamental no diagnóstico das doenças profissionais. Se a história pregressa do caso em questão não tivesse sido cuidadosamente investigada, não teria sido possível levantar-se a idéia diagnóstica.
A longa exposição (22 anos) à poeira de asbestos trouxe alterações profundas da função pulmonar, com o estabelecimento de um processo pulmonar de natureza mista, obstrutivo e restritivo, que condiciona redução muito acentuada dos volumes pulmonares e que se acompanha de grau moderado de hiperinflação pulmonar relativa em decorrência do enfisema existente. Existem alterações nítidas da dinâmica respiratória, com acentuada ineficiência ventilatória. Observa-se intensa anoxemia de repouso, que se acentua muito pelo exercício; nota-se nítido "shunt" direito-esquerdo, de natureza funcional, representado pelas áreas perfundidas mas não ventiladas, afetadas pela fibrose. Existe, portanto, uma insuficiência ventilatória de grau intenso em repouso, com grande dispnéia aos esforços, ao lado de uma insuficiência alvéolo-respiratória de grau acentuado, que piora pelo esforço, evidenciando nítido comprometimento da difusão.
O quadro radiológico, absolutamente típico de fases avançadas dessa pneumoconiose, confirma de modo insofismável o diagnóstico feito.
É, obviamente, impossível que outros casos semelhantes não existam, no Brasil, em trabalhadores expostos ao asbestos. Portanto, deve-se acreditar que numerosos outros casos, semelhantes ao presente, estejam sendo examinados e rotulados como portadores de outras patologias.
A publicação deste caso isolado, portanto, visa apenas chamar a atenção dos pneumologistas, médicos do trabalho, sanitaristas e outros que tenham contato com trabalhadores no sentido de que sempre seja feita cuidadosa anamnese profissional e, quando esta indique exposição longa a poeira de asbestos, sejam realizados o exame radiológico dos pulmões e as provas de função pulmonar para o diagnóstico necessário. Unicamente assim será possível conhecer-se a real proporção do problema entre nós, especialmente quando, por força da crescente industrialização que o país atravessa, o uso de asbestos torna-se cada vez mais freqüente e mais indispensável, propiciando todas as condições necessárias para o aparecimento da grave pneumoconiose. Somente quando a atenção de todos os pesquisadores estiver voltada para o fato evidente de que os trabalhadores brasileiros estão tão expostos ao risco dessa moléstia profissional como os trabalhadores de outros países, onde os casos são diagnosticados com maior facilidade, poder-se-ão criar as condições preventivas necessárias à proteção do homem que trabalha.
REFERÊNCIAS BIBLIOGRÁFICAS
1. FACCINI, M. – La radiologia delle pneumoconiosi. Padova, Piccini Ed., 1973. [ Links ]
2. GILSON, J. C. – Asbestos. In: International Labour Office. Encyclopaedia of Occupational Health. Geneva, 1971. v. 1, p. 120-4. [ Links ]
3. HUNTER, D. – The diseases of occupation. London, The English Universities Press, 1969. [ Links ]
4. INSTITUTO BRASILEIRO DE GEOGRAFIA E ESTATÍSTICA – Anuário estatístico. Rio de Janeiro, 1973. [ Links ]
5. RUBIN, E. H. – Diseases of the chest. Emphasizing X-ray diagnosis. Philadelphia, Saunders, 1947. [ Links ]
6. RAMAZZINI, B. – As doenças dos trabalhadores. Rio de Janeiro, Liga Brasileira contra os Acidentes do Trabalho, 1971. [ Links ]
7. SANDER, O. A. – Silicosis and asbestosis. In: Naclerius, E. A. – Broncho-pulmonary diseases: basic aspects, diagnosis and treatment. Milwaukee, Hoeber Harder, 1957. p. 385-9. [ Links ]
8. WEIL, H. et al. – Lung function consequences of dust exposure in asbestos cement manufacturing plants. Arch. Environ. Hlth., 30:88-99, 1975. [ Links ]
Recebido para publicação em 09-06-75
Aprovado para publicação em 30-06-75
Trabalho conjunto da Faculdade de Saúde pública da Universidade de São Paulo, da Faculdade de Ciências Médicas da Santa Casa de São Paulo e do Instituto de Pneumologia da Santa Casa de Misericórdia de São Paulo
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